sábado, 17 de agosto de 2013

Em quatro anos, 77 policiais foram afastados por transtorno mental

Na Polícia Militar da Bahia, entre 2008 e 2012, 40% dos PMs afastados por problemas de saúde apresentaram distúrbios mentais e de comportamento. Na sexta-feira, um policial depredou um ônibus no Centro após uma crise.

 Era uma data especial e isso não mudou nada. O soldado Jéferson Alves, 33 anos, então da 58ª CIPM (Cosme de Farias), apontava uma pistola para a própria cabeça enquanto as mães de todo o Brasil recebiam rosas vermelhas e outros mimos. A sua talvez o esperasse para o almoço naquele domingo, 12 de maio deste ano. Sentado na cama, Jéferson ainda conversou com alguém ao celular antes de apertar o gatilho. A PM perdia mais um dos seus homens. Não para o crime, mas para ela própria.


E assim foi com o capitão Alexsander Valério Ferreira, 38, da 15ª CIPM (Itapuã), que também se matou em sua casa, neste caso por envenenamento, no dia 9 de junho;  e com o soldado Aloísio Santos da Rocha, do Departamento de Planejamento, que atirou contra a própria cabeça no primeiro sábado deste mês. 

Os três suicídios de policiais em 2013 até alarmam a Polícia Militar, já que, de acordo com números não oficiais, a média é de dois ao longo de um ano. Mas, pior que as histórias por trás dos suicídios é a constatação de que elas são apenas a consequência trágica de um problema muito maior.

Dados do Centro de Perícias Médicas Militares (CPMM), aos quais o CORREIO teve acesso, mostram que, entre 2008 e 2012, a PM registrou 184 afastamentos definitivos e temporários. Destes, mais de 40% (77) estão relacionados com transtornos mentais e de comportamento. 

 Os casos de síndrome do pânico, tensão pós-trauma, transtornos compulsivos e, como no caso de Jéferson, depressão, se multiplicam e são cada vez mais comuns. Pelo menos cinco policiais militares que tentaram suicídio estão atualmente em tratamento no Serviço de Valorização Profissional (Sevap), responsável pelos atendimentos psicológicos na PM.

Silêncio

A família de Jéferson prefere não falar. Mas amigos e colegas de farda estão certos de que foi a rotina da polícia que o fez cometer suicídio. “Depois que virou PM entrou em depressão. Se isolou, deixou de ser aquele cara alegre”, narrou uma amiga bem próxima. “Não aguentou a pressão e não teve ninguém dentro da polícia que evitasse a tragédia”, disse um colega soldado.

Resultado do dia a dia de violência que Jéferson enfrentava, o Sevap realizou, somente em 2012, 1,4 mil atendimentos — sendo 123 casos encaminhados para o setor de psicologia. Entre os psicólogos do órgão há um sentimento comum de que a demanda é grande demais para o tamanho da estrutura.

“A quantidade de profissionais não comporta. São casos difíceis e crônicos, que duram quatro, cinco meses de tratamento”, afirmou o major Antônio Honorato Barbosa, que assumiu a coordenação do Sevap há cerca de dois meses. “Por isso, nossa prioridade é sanar as demandas organizacionais. Mandar o policial para a clínica só em último caso”, admite.

Casos graves

Nos números não estão contabilizados os 27 encaminhamentos para atendimentos psiquiátricos em instituições externas. São os casos mais graves. Já que não existes psiquiatras na PM, eles são levados para locais como o Núcleo de Atendimento Psicológico (Nead), da Secretaria da Segurança Pública (SSP), Sanatório São Paulo e algumas fundações.

“Na medida do possível, vamos encaixando esses policiais nestas instituições. Às vezes, até pela amizade”, explica o major Honorato.  

De todos, o Sanatório São Paulo é o único com capacidade de internação. “Aqui são comuns pacientes da polícia. São casos e mais casos de policiais internados ou que frequentam o hospital-dia”, afirma, sem se identificar, uma funcionária do sanatório, hoje conhecido como Espaço Nelson Pires.

“O excesso do Nelson Pires existe porque eles são a única opção”, confirma major Honorato. Procurado pelo CORREIO, o sanatório recusou-se a divulgar o número de pacientes atendidos.   

Os distúrbios psicológicos são um problema não só crescente, mas antigo dentro da PM. Um estudo de conclusão do mestrado pela Ufba, do psicólogo Robson Souza, mostra que o problema é grave pelo menos desde o início desta década.

A partir de registros do CPMM, no período compreendido entre 2001 e outubro de 2008, foram avaliados como definitivamente incapazes para a atividade profissional, em razão de transtornos mentais e comportamentais, 295 policiais militares. 


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Sem psiquiatras

 Na época, o número correspondia a aproximadamente 1% do efetivo. “Todos foram reformados com idade entre 35 a 45 anos. Uma perda significativa para a corporação”, escreveu Robson, que é psicólogo do próprio Sevap.

A diferença dos dados antigos para os mais recentes é a quantidade de afastamentos definitivos. Atualmente, os policiais são afastados muito mais de forma temporária. Tanto que, dos 77 afastados por problemas mentais entre 2008 e 2012, apenas dois foram reformados.  

Segundo os próprios psicólogos, isso ocorre porque não há psiquiatras para afastar os PMs, o que aconteceu após o fechamento do Hospital da Polícia Militar, há dois anos. Simplesmente, não há quem emita laudos de afastamento. Os médicos psiquiatras de instituição de fora não teriam essa autoridade.

“O que existe hoje é a política de manter o cara na corporação, mesmo que ele não esteja funcionando. Estou tratando um policial bipolar que não tem condições de ir para a rua, mas só posso afastá-lo temporariamente. Já fiz isso várias vezes. Em todas, solicitei também o afastamento da arma”, afirma Robson.

Mas há exceções. Casos tão sérios que nem a própria PM consegue barrar o afastamento. Uma soldado que era lotada na 50ª CIPM (Sete de Abril) sofreu anos com síndrome do pânico, “psicose não específica” e episódios de depressão.

Com mãos trêmulas e olhar sempre direcionado para o chão, ela conta que não suportou a pressão da rotina, o que foi agravado por perseguições de oficiais por conta de sua doença. Hoje, ela toma dois comprimidos por dia de antidepressivos e se diz viciada no medicamento Rivotril. Acabou afastada das atividades em 2011.


Surto

Talvez seja o futuro do PM que, na sexta-feira à noite, depredou um carro e um ônibus na Avenida Joana Angélica. Lotado na 17ª CIPM (Uruguai), o PM se descontrolou e passou a dar socos e pontapés no para-brisa do ônibus, pulando de lá para o capô dos carros que passavam. “Ficou no meio da rua e chutava os carros que passavam”, contou uma vendedora ambulante.    

Em nota, a PM informou que o policial já havia dado entrada na Junta Médica anteriormente. Nesse momento, ele “se encontra afastado das atividades operacionais e administrativas em decorrência de tratamento psiquiátrico a que está submetido”. Após o episódio de sexta-feira, o policial foi internado em uma clínica psiquiátrica.

Depressão é principal vilã da saúde mental da tropa

Por que os consultórios do setor de psicologia da corporação estão cheios de policiais com depressão, estresse e transtornos compulsivos? Para o major, psicanalista e professor do mestrado de Segurança Pública da Ufba João Apolinário da Silva, a doença mental é algo latente no policial. Se o acompanhamento psicológico não for adequado, diz ele, qualquer policial pode ficar à beira de um ataque de nervos.

“Se não tiver apoio, com a rotina que leva e a pressão dos superiores, pode surtar mesmo”, explica o professor. Os próprios casos de suicídio seguem o mesmo caminho. “Quando o policial se vê sem condições de resolver seus problemas, ele opta pela autolesão fatal”.
 
Por isso, a preocupação com aquela que é considerada uma das principais vilãs da saúde mental do policial: a depressão, primeira da lista de doenças. “Uma das consequências da depressão é o próprio suicídio”, diz o psicólogo e sargento Robson Souza. Atualmente, ele  trata  no Serviço de Valorização Profissional (Sevap),  Dendezeiros, cinco PMs que tentaram suicídio.

Tanto João Apolinário quanto Robson destacam que, na última década, a PM passou a priorizar a capacitação operacional dos policiais em detrimento à saúde e ao bem-estar. A descentralização dos batalhões também teria desestruturado o psicológico dos PMs. Foi o fim do sentimento de corpo. “Não adianta ensinar ao policial a brutalidade. O PM tem que aprender a avaliar as situações usando o cérebro”, diz Robson. “Mas, para isso, o comando precisa entender que um policial equilibrado é tão importante quanto bem armado”, completa o major.

Policiais militares são pacientes que demoram a buscar ajuda

Entre psicólogos e psiquiatras, policiais militares costumam ser vistos como pacientes resistentes a ajuda. Mas, aos poucos, essa realidade está mudando. A procura pelo Serviço de Valorização Profissional (Sevap), responsável pelos atendimentos psicológicos na PM, tem crescido. E costuma acontecer de duas formas: pelo amor ou pela dor.

“O PM chega aqui através da influência da família ou, muitas vezes, aparece depois de uma situação de troca de tiros, de acidente com a viatura ou por ter assistido a morte de um colega”, afirma o coordenador do Sevap, major Antônio Honorato Barbosa.

Com 10 psicólogos, 14 assistentes e 4 enfermeiras, o setor tenta dar conta de  acompanhamentos sociais, que vão de palestras sobre alcoolismo nas companhias independentes até programas especiais, como o de combate ao estresse pós-traumático.

As companhias especializadas, a exemplo de Rondesp e Gêmeos, recebem tratamento diferenciado. Ao assumir o setor, há cerca de dois meses, o major Honorato iniciou uma política de expansão para o interior. O serviço já passou a funcionar em Feira e Juazeiro — em breve, Itabuna. Desde 2008, existe um projeto de espaço terapêutico para que policiais passem por sessões de ioga, acupuntura e tai-chi-chuan, mas até o momento não foram disponibilizados recursos para a compra de equipamentos. 

Fonte: Correio da Bahia.