Autor: Maria Lucia Karam em fevereiro 11, 2014
Agentes da Coordenadoria de Recursos Especiais (CORE) da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro vasculham favela em
busca de drogas.
O debate em torno da violência praticada por agentes do Estado
brasileiro frequentemente se concentra na ação de policiais,
especialmente os policiais militares que, encarregados do policiamento
ostensivo, são colocados na
linha de frente
da atuação do sistema penal. Logo surge a simplista identificação da
qualidade de militares dada a esses policiais encarregados do
policiamento ostensivo – os integrantes das polícias militares estaduais
– como aparente causa dessa violência. Detendo-se naquela qualificação,
muitos falam em desmilitarização das atividades policiais, simplesmente
reivindicando o fim dessas polícias militares.
Alguns vão além,
propondo a unificação, reestruturação e maior autonomia organizacional
para as polícias estaduais, na linha vinda com a
Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 51/2013, que começa a tramitar no Senado, visando “reestruturar o
modelo de segurança pública a partir da desmilitarização do modelo policial”.
Desde logo, cabe louvar a referida PEC no que afasta a distorcida concepção militarizada da
segurança pública
que, paradoxalmente explicitada na Carta de 1988, faz das polícias
militares e corpos de bombeiros militares estaduais forças auxiliares e
reserva do exército
(§ 6º do artigo 144 da Constituição Federal brasileira). É a própria
Constituição Federal que atribui às polícias militares estaduais as
típicas atividades policiais de policiamento ostensivo e preservação da
ordem pública e aos corpos de bombeiros militares a execução de
atividades de defesa civil (§ 5º do mesmo artigo 144). Tais funções,
eminentemente civis, pois voltadas para a defesa da sociedade e de seus
cidadãos, são, por sua própria natureza, radicalmente diversas das
funções reservadas às forças armadas de defesa da soberania e
integridade nacionais, voltadas para ameaças externas e guerras.
“Não são apenas as polícias que precisam ser
desmilitarizadas. Muito antes disso, é preciso afastar a ‘militarização
ideológica da segurança pública’”
Eliminada tal distorção, a organização das polícias em entes
diferenciados ou unificados e sua estruturação interna – carreira;
tarefas específicas derivadas dos dois grandes eixos de policiamento
ostensivo e investigação; disciplina;
controles internos
e externos; formação; e outros aspectos de seu funcionamento – são
questões que estão a merecer amplo debate que, naturalmente, há de
incorporar a voz dos próprios policiais.
A indispensável desvinculação das polícias e corpos de bombeiros
militares do exército e a eventual reorganização das agências policiais
longe estão, porém, de significar o esgotamento do debate sobre a
desmilitarização das atividades policiais. A necessária e urgente
desmilitarização requer muito mais do que isso. A militarização das
atividades policiais não surge da mera (ainda que aberrante) vinculação
das polícias militares ao exército, ou da mera existência de polícias
denominadas militares – neste ponto, basta pensar nas semelhanças entre a
Coordenadoria de Recursos Especiais (CORE), unidade especial da Polícia
Civil do Estado do Rio de Janeiro e o Batalhão de Operações Policiais
Especiais (BOPE) da Polícia Militar do mesmo estado, ou, em âmbito
internacional, nos
Special Weapons And Tactics Teams (SWATs) dos civis departamentos de polícia norte-americanos.
SWAT da polícia de San Diego (EUA)
Mas, muito mais do que isso, a militarização das atividades policiais
não é apenas uma questão de polícias. Não são apenas as polícias que
precisam ser desmilitarizadas. Muito antes disso, é preciso afastar a
“militarização ideológica da segurança pública” (1), amplamente tolerada
e apoiada até mesmo por muitos dos que hoje falam em desmilitarização. A
necessária desmilitarização pressupõe uma nova concepção das ideias de
segurança e atuação policial que, afastando o dominante paradigma
bélico, resgate a ideia do policial como agente da paz, cujas tarefas
primordiais sejam a de proteger e prestar serviços aos cidadãos. A
prevalência dessa nova concepção não depende apenas de transformações
internas nas polícias e na formação dos policiais. Há de ser, antes de
tudo, adotada pela própria sociedade e exigida dos governantes.
“A ‘guerra às drogas’ não é propriamente uma
guerra contra as drogas. Não se trata de uma guerra contra coisas. Como
quaisquer outras guerras, é sim uma guerra contra pessoas”
Muitos dos que hoje falam em desmilitarização e estigmatizam
especialmente os policiais militares não têm se incomodado com atuações
das próprias Forças Armadas que, em claro desvio das funções que a
Constituição Federal lhes atribui, há tantos anos vêm sendo
ilegitimamente utilizadas em atividades policiais. Na cidade do Rio de
Janeiro, no final do já distante ano de 1994, foi concretamente ensaiada
a proposta de transferir as tarefas de segurança pública para as Forças
Armadas, só sendo então abandonada porque, como seria de esperar, não
se produziram os resultados com que a fantasia da ideologia repressora
sonhava (2). Naquela época, não se ouviram as vozes de muitos dos que
hoje falam em desmilitarização e estigmatizam especialmente os policiais
militares.
O cenário do tão incensado (pelo menos, até há pouco tempo) novo
modelo de policiamento iniciado no Rio de Janeiro – as chamadas Unidades
de Polícia Pacificadora (UPPs) – inclui tanques de guerra e militares
com fuzis e metralhadoras, seja na ocupação inicial, seja de forma
duradoura, como aconteceu nas favelas do Complexo do Alemão e da Vila
Cruzeiro, em que o Exército permaneceu ali estacionado por quase dois
anos, a partir de novembro de 2010. As vozes de muitos dos que hoje
falam em desmilitarização e estigmatizam especialmente os policiais
militares não se fazem ouvir, nem mesmo quando, no momento inicial das
ocupações, chega-se a hastear a bandeira nacional, em claro símbolo de
“conquista” de território “inimigo”, a não deixar qualquer dúvida quanto
ao paradigma bélico, quanto à “militarização ideológica da segurança
pública”.
O pretexto para a ocupação militarizada de favelas, como se fossem
territórios “inimigos” conquistados ou a serem conquistados, é a
“libertação” dessas comunidades pobres do jugo dos “traficantes” das
selecionadas drogas tornadas ilícitas. Com efeito, é exatamente a
proibição a determinadas drogas tornadas ilícitas o motor principal da
militarização das atividades policiais, seja no Rio de Janeiro, no
Brasil, ou em outras partes do mundo. No início dos anos 1970, a
política de proibição às selecionadas drogas tornadas ilícitas,
globalmente iniciada no início do século XX, intensificou a repressão a
seus produtores, comerciantes e consumidores, com a introdução da
“guerra às drogas” que, formalmente declarada pelo ex-presidente
norte-americano Richard Nixon em 1971, logo se espalhou pelo mundo.
A “guerra às drogas” não é propriamente uma guerra contra as drogas.
Não se trata de uma guerra contra coisas. Como quaisquer outras guerras,
é sim uma guerra contra pessoas – os produtores, comerciantes e
consumidores das arbitrariamente selecionadas drogas tornadas ilícitas.
Mas, não exatamente todos eles. Os alvos preferenciais da “guerra às
drogas” são os mais vulneráveis dentre esses produtores, comerciantes e
consumidores das substâncias proibidas. Os “inimigos” nessa guerra são
os pobres, os marginalizados, os negros, os desprovidos de poder, como
os vendedores de drogas do varejo das favelas do Rio de Janeiro,
demonizados como “traficantes”, ou aqueles que a eles se assemelham,
pela cor da pele, pelas mesmas condições de pobreza e marginalização,
pelo local de moradia que, conforme o paradigma bélico, não deve ser
policiado como os demais locais de moradia, mas sim militarmente
“conquistado” e ocupado.
“Sem o fim do paradigma bélico que dita a
atuação do sistema penal, qualquer proposta de desmilitarização das
atividades policiais será inútil”
O paradigma bélico, explicitamente retratado na expressão “guerra às
drogas”, lida com “inimigos”. Em uma guerra, quem deve “combater” o
“inimigo”, deve eliminá-lo. Policiais – militares ou civis – são, assim,
formal ou informalmente autorizados e mesmo estimulados, por
governantes e por grande parte do conjunto da sociedade, a praticar a
violência, a tortura, o extermínio. Colocados no “front” da repressão
equiparada à guerra, policiais – militares ou civis – se expõem cada vez
mais a práticas ilegais e violentas e a sistemáticas violações de
direitos humanos. Como aponta o Inspetor Francisco Chao, porta-voz da
Law Enforcement Against Prohibition (LEAP) e integrante da Polícia Civil
do Estado do Rio de Janeiro, “essa guerra, mais do que a nossa força
laborativa, sacrificada em investigações ou operações policiais, mais do
que o risco de vida, mais do que as vidas dos que tombaram pelo
caminho, está deturpando nossos princípios e valores mais elementares”
(3).
A missão original das polícias de promover a paz e a harmonia assim
se perde e sua imagem se deteriora, contaminada pela militarização
explicitada na nociva e sanguinária política de “guerra às drogas”.
Naturalmente, os policiais – militares ou civis – não são nem os únicos
nem os principais responsáveis pela violência produzida pelo sistema
penal na “guerra às drogas”, mas são eles os preferencialmente
alcançados por um estigma semelhante ao que recai sobre os selecionados
para cumprir o aparentemente oposto papel do “criminoso”.
O estigma se reproduz nos debates sobre a desmilitarização no Brasil.
Concentrando-se na ação de policiais, especialmente policiais
militares, deixa-se intocada a ação corroborante e incentivadora do
Ministério Público e do Poder Judiciário, de governantes e legisladores,
da mídia, da sociedade como um todo. Concentrando-se em propostas de
mera reestruturação das polícias, silenciando quanto à proibição e sua
política de “guerra às drogas”, deixa-se intocado o motor principal da
militarização das atividades policiais.
Sem o fim do paradigma bélico que dita a atuação do sistema penal,
qualquer proposta de desmilitarização das atividades policiais será
inútil. Sem o fim da “guerra às drogas” não haverá desmilitarização das
atividades policiais. Uma efetiva desmilitarização das atividades
policiais só será possível através de uma necessária e urgente
mobilização para romper com a proibição e sua política de “guerra às
drogas” e realizar a legalização e consequente regulação da produção, do
comércio e do consumo de todas as drogas.
FONTE: ABORDAGEM POLICIAL.