Em alguns momentos da minha curta carreira pude presenciar o toque
intempestivo da morte em vidas com grandes promessas de vida. Mais
constantemente isto ocorreu quando, em serviço, o rádio da viatura
informava sobre um corpo estendido no chão de algum bairro periférico,
vítima de disparo de arma de fogo, atingido pela dinâmica cotidiana das
periferias do país, onde jovens, machos, pobres e negros são o
preferencial alvo. Destas mortes os policiais até conseguem se
distanciar (o que é terrível!), pois incutem-se a distância estabelecida
pelo “envolvimento com o tráfico de drogas” e coisas do tipo, chegando
até a lógicas
lombrosianas que garantam aceitar a normalidade daquela tragédia.
Mas também vi cenas onde nem sequer tais justificativas podem ser
inseridas, principalmente em acidentes como desabamentos, incêndios,
afogamentos etc. Momentos em que não é possível se dar o luxo do
distanciamento, mesmo o luxo mais irresponsável. Momentos em que é
inevitável sentir a ferida da fragilidade humana. Os policiais e
bombeiros que estavam
na partida de futebol no estádio da Fonte Nova (Salvador), em 2007, quando parte da arquibancada desabou
e sete pessoas foram mortas sabem bem como somos desguarnecidos em tais
circunstâncias: pessoas que apenas viviam, e provavelmente riam
instantes antes da tragédia, foram-se.
Não é menos o que se sente após o incêndio à boate em Santa Maria,
Rio Grande do Sul. Policiais e bombeiros que atuaram na tentativa de
resgate à vida das vítimas, lutaram para reduzir o dano do inexplicável,
para que menos jovens fossem engolidos pela intolerância da morte.
Ninguém sai imune deste tipo de trabalho, mesmo com a consciência de que
este é o desafio a ser encarado em nosso ofício, visando poupar aqueles
que mais proximamente viveram com as vítimas durante suas trajetórias.
Saímos todos enlutados.
Os policiais e os bombeiros se inserem de modo peculiar no
lamento do poeta Fabrício Carpinejar, uma ode à impotência frente ao ocorrido:
Morri em Santa Maria hoje. Quem não morreu? Morri na Rua dos Andradas, 1925. Numa ladeira encrespada de fumaça.
A fumaça nunca foi tão negra no Rio Grande do Sul. Nunca uma nuvem foi tão nefasta.
Nem as tempestades mais mórbidas e elétricas desejam sua companhia. Seguirá sozinha, avulsa, página arrancada de um mapa.
A fumaça corrompeu o céu para sempre. O azul é cinza, anoitecemos em 27 de janeiro de 2013.
As chamas se acalmaram às 5h30, mas a morte nunca mais será controlada.
Morri porque tenho uma filha adolescente que demora a voltar para casa.
Morri porque já entrei em uma boate pensando como sairia dali em caso de incêndio.
Morri porque prefiro ficar perto do palco para ouvir melhor a banda.
Morri porque já confundi a porta de banheiro com a de emergência.
Morri porque jamais o fogo pede desculpas quando passa.
Morri porque já fui de algum jeito todos que morreram.
Morri sufocado de excesso de morte; como acordar de novo?
O prédio não aterrissou da manhã, como um avião desgovernado na pista.
A saída era uma só e o medo vinha de todos os lados.
Os adolescentes não vão acordar na hora do almoço. Não vão se lembrar
de nada. Ou entender como se distanciaram de repente do futuro.
Mais de duzentos e cinquenta jovens sem o último beijo da mãe, do pai, dos irmãos.
Os telefones ainda tocam no peito das vítimas estendidas no Ginásio Municipal.
As famílias ainda procuram suas crianças. As crianças universitárias estão eternamente no silencioso.
Ninguém tem coragem de atender e avisar o que aconteceu.
As palavras perderam o sentido.
Não há muito o que dizer.