Índices mostram que, na média, tropa da PM já beira a obesidade
Quem
presta atenção nas ruas logo nota que os policiais militares baianos
levam na cintura mais do que armas e munição. O CORREIO teve acesso a
dados que provam: a tropa está quase obesa.
O pique não atingiu 100 metros. Com seus 115 quilos, boa parte
concentrados na região abdominal, o soldado Rocha* abortou a perseguição
no bairro de Itapuã, onde viu o ladrão roubar uma mochila e desaparecer
na esquina. Arfando, com a silhueta um tanto quanto avantajada, levou
as mãos aos joelhos. “O pessoal que passava ainda riu da minha cara.
Inclusive a vítima. Eu tava botando os bofes para fora”, conta.
Testemunhar
um policial gordinho perder uma corrida para o ladrão pode até parecer
engraçado, mas, no caso da Polícia Militar da Bahia, a situação resume
um problema.
Levantamento ao qual o CORREIO teve acesso mostra
que o Índice de Massa Corporal (IMC) da PM é, em média, de 29,5 kg/m². A
Organização Mundial de Saúde (OMS) considera que, entre 25 e 29,9, o
indivíduo tem sobrepeso. A partir de 29,9 já é tratado como obeso de
nível 1.
Ou seja, a tropa da PM baiana beira a obesidade. O
índice foi confirmado pelo Departamento de Saúde (DS) da corporação, que
obteve a média do IMC a partir da avaliação física de 6,2 mil policiais
nos últimos cinco anos.
As
avaliações foram feitas em quatro circunstâncias diferentes: na fase de
admissão, nas mudanças de patentes (promoções), em cursos internos e
externos e durante atendimentos médicos.
“A partir desses dados,
concluímos que nossa tropa está acima do peso. Readequar esse IMC é
prioridade”, afirmou o coordenador do DS, coronel Nelson Ribeiro.
O
número de referência é o único que a PM tem. Até porque, avaliações
como o Teste de Aptidão Física (TAF), são realizadas apenas quando se
entra na PM ou quando se é promovido. Além disso, sequer exames
periódicos são realizados.
“Desde que entrei na PM só fiz um
exame de sangue, na admissão. A polícia não acompanha a saúde dos seus
homens”, afirma o soldado Rocha, símbolo de que se pode chamar de
“medida certa” às avessas. Ele explica que, quando entrou na corporação,
pesava 80 quilos. Agora, com 115 e 1,78m de altura, vê o que acontece
com os colegas. “Com a exceção dos novatos, a tropa é quase toda acima
do peso. Sem atividade física e alimentação ruim, não tem como ser
diferente”.
Sem percentuais que apontem a quantidade de policiais
acima do peso, a PM só conta mesmo com o IMC médio da tropa. Mas a
maior prova de que esse número é grande está nas ruas, onde há PMs
exibindo cinturas protuberantes e fardas apertadas.
O problema é
que poucos, como Rocha, querem falar no assunto. Menos ainda aceitam
ser fotografados, como ele fez. Os que aceitam reclamam da falta de
tempo e estrutura para fazer atividades físicas, além da dificuldade
financeira para investir em alimentação.
O soldado Freitas*, da
12ª CIPM (Rio Vermelho), chegou a pesar 145 quilos e teve de fazer
cirurgia de redução de estômago. Perdeu 40 kg e ainda luta contra a
balança.
Obeso
“Eu já tinha um sobrepeso, mas na PM
fiquei obeso. Você só faz tirar serviço e quando vê não suporta nem o
próprio peso. O negócio deles é botar o policial na rua, não importa em
que condição”, critica Freitas.
Já Oliveira*, que diante do seu
excesso de massa imprime esforço maior que o normal para fazer rondas a
pé pelo Centro, tem vergonha de revelar em que companhia é lotado. O
segundo emprego o impede de malhar. “Temos que completar o orçamento
fazendo um bico. Fica difícil fazer uma academia”.
Entre
os oficiais, a realidade não é muito diferente. Um deles culpa o
excesso de trabalho. “Pergunte à tropa se ela prefere fazer uma
atividade física após o serviço ou ir descansar em casa”, observou
capitão Matos*, do 18º Batalhão (Centro Histórico).
Os PMs
acima do peso relatam dificuldade não só para correr atrás de bandido,
mas também para entrar e sair das viaturas, carregar armamento pesado e
atirar com precisão.
Até as mulheres dizem que não têm como se
cuidar. “As companhias deveriam ter aparelhos de musculação com
acompanhamento de preparador físico”, disse a soldado Rita*, sem
conseguir esconder os pneus debaixo da farda.
O sobrepeso, como
se sabe, impacta na saúde. Hipertensão, diabetes, colesterol alto e
doenças do coração são comuns na PM. Rocha acumula todos. Há dois anos,
sofreu um Acidente Vascular Cerebral (AVC). “Estou com 115 quilos, mas
já cheguei a 125”.
Prevenção
O coordenador da
Associação dos Policiais e Bombeiros da Bahia (Aspra), Marco Prisco, diz
que um dos pedidos da entidade é a realização de exames periódicos.
“Pelo
menos duas ou três vezes por ano. Eles não têm o levantamento de AVCs e
infartos, mas o índice é altíssimo”, diz Prisco, que aponta também
problemas ortopédicos. “A tropa está doente. Só este ano soubemos de
seis policiais que morreram de câncer”.
Outra prova de que a
tropa está engordando está nas lojas que vendem uniformes da polícia. A
Estrela Uniformes, na Ladeira da Praça, tem tido dificuldade no estoque
porque trabalha apenas com a numeração das fardas entre 42 e 48.
“Mas,
de uns tempos para cá, muitas têm que ser feitas por encomenda.
Normalmente são para veteranos. Eles se cuidam menos”, decreta a dona do
estabelecimento, Eliana Santana.
*nomes fictícios
Saúde da polícia foi deixada de lado, afirma oficial reformado
Para
o major reformado e professor do mestrado de Segurança Pública da
Universidade Federal da Bahia (Ufba), João Apolinário da Silva, o
desleixo com o preparo físico e com a saúde dos policiais na Bahia
começa a ser notado a partir do início da década de 1990, quando houve
uma mudança estrutural na PM. Ele acredita que a criação das chamadas
Companhias Independentes de Polícia Militar (CIPMs) afastou o policial
de diversas atividades que lhe proporcionavam mais qualidade de vida.
Os
antigos batalhões eram mais centralizados, diz o especialista, com
academias e quadras poliesportivas. “Havia torneios de futebol e
olimpíadas esportivas. Todos os batalhões tinham academias. Hoje o
policial chega na companhia e vai direto para a rua. Antes eles tomavam
café e almoçavam juntos. Era como uma família”.
O próprio
Hospital da Polícia Militar, que funcionou muito tempo nos Dendezeiros,
está fechado há dois anos. As mudanças ocorreram, explica o oficial
reformado, de cima para baixo. Segundo o professor, com o passar dos
anos, a saúde foi esquecida pelo Comando. “Antes, a polícia tinha três
quadros: o operacional, o administrativo e o médico. Só para se ter uma
ideia, cada batalhão tinha a sua ambulância. Depois, o operacional teve
uma supremacia sobre os outros dois. A questão médica foi completamente
colocada de lado”.
O professor observa que, na Bahia,
praticamente não há estudos científicos sobre a saúde dos policiais. Ele
defende que seja criado um planejamento estratégico para saber qual é o
tamanho desse problema. “É preciso que se faça um diagnóstico da vida
dos policiais para a elaboração de um programa de condicionamento
físico”. A própria geografia da cidade, diz ele, pede isso. “Imagine uma
pessoa obesa, com armamento sensível, subindo o Alto das Pombas. É por
isso que as tragédias ocorrem”, acredita.
Rango de graça em restaurantes favorece pecado da gula
Há
algumas explicações para que o Índice de Massa Corporal (IMC) da PM
esteja bem distante do atingido pelo atlético lutador Anderson Silva e
bem perto do alcançado pelo pesado atacante Walter, do Goiás. Uma dessas
explicações está nos próprios policiais. Não foram poucos os que, sem
se identificar, apontaram o pecado da gula como uma das causas do
problema. Ou seja, a culpa da silhueta avantajada não é só de quem
comanda a tropa.
Até porque, como é comum nas ruas de Salvador,
PMs têm acesso livre em restaurantes e lanchonetes. E sem pagar nada.
“Tem isso também. Muitos de nós têm o privilégio de se alimentar de
graça. Uns acabam comendo demais. E várias vezes por dia”, reconheceu um
sargento da 12ª CIPM (Rio Vermelho).
O CORREIO chegou a
interpelar um PM que, após sair de uma lanchonete na Praça da Sé, no
Centro Histórico, se recusou a falar de suas operações gastronômicas.
“Não tenho como conversar com você em serviço”, esquivou-se. Conversar
não pode, mas, pelo visto, comer é de lei. O dono da lanchonete disse
que tudo não passa de um agrado. “Estou aqui há muito tempo e sempre foi
assim”, disse.
Mas, segundo contam donos de estabelecimentos e
os próprios policiais, a prática é quase uma moeda de troca não
declarada. “É aquela coisa. Ele faz a segurança da área e eu ajudo na
alimentação”, disse o dono de um bar, na Barra.
Ali, todos os
dias, sempre às 20h, uma viatura passa pela porta do estabelecimento. Um
policial desce e pega a encomenda com petiscos diversos e
refrigerantes. Para a maioria dos PMs e dos donos de restaurante, tudo é
muito natural. Mas a dona de um restaurante no Rio Vermelho argumenta
que a relação é, por vezes, tensa.
“Tem policial que fica
viciado, sabe? A partir do momento que ele vê aquilo como uma moeda de
troca fica complicado. Tem gente que dá por medo de ser assaltado”,
destacou. Procurada pelo CORREIO, a assessoria de comunicação da Polícia
Militar não respondeu, até o fechamento desta edição, sobre a prática
relatada por donos de restaurantes.
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