domingo, 14 de julho de 2013

Índices mostram que, na média, tropa da PM já beira a obesidade

Quem presta atenção nas ruas logo nota que os policiais militares baianos levam na cintura mais do que armas e munição. O CORREIO teve acesso a dados que provam: a tropa está quase obesa.

O pique não atingiu 100 metros. Com seus 115 quilos, boa parte concentrados na região abdominal, o soldado Rocha* abortou a perseguição no bairro de Itapuã, onde viu o ladrão roubar uma mochila e desaparecer na esquina. Arfando, com a silhueta um tanto quanto avantajada, levou as mãos aos joelhos. “O pessoal que passava ainda riu da minha cara. Inclusive a vítima. Eu tava botando os bofes para fora”, conta.

Testemunhar um policial gordinho perder uma corrida para o ladrão pode até parecer engraçado, mas, no caso da Polícia Militar da Bahia, a situação resume um problema.

Levantamento ao qual o CORREIO teve acesso mostra que o Índice de Massa Corporal (IMC) da PM é, em média, de 29,5 kg/m². A Organização Mundial de Saúde (OMS) considera que, entre 25 e 29,9, o indivíduo tem sobrepeso. A partir de 29,9 já é tratado como obeso de nível 1.

Ou seja, a tropa da PM baiana beira a obesidade. O índice foi confirmado pelo Departamento de Saúde (DS) da corporação, que obteve a média do IMC a partir da avaliação física de 6,2 mil policiais nos últimos cinco anos.



As avaliações foram feitas em quatro circunstâncias diferentes: na fase de admissão, nas mudanças de patentes (promoções), em cursos internos e externos e durante atendimentos médicos.

“A partir desses dados, concluímos que nossa tropa está acima do peso. Readequar esse IMC é prioridade”, afirmou o coordenador do DS, coronel Nelson Ribeiro.

O número de referência é o único que a PM tem. Até porque, avaliações como o Teste de Aptidão Física (TAF), são realizadas apenas quando se entra na PM ou quando se é promovido. Além disso, sequer exames periódicos são realizados.

“Desde que entrei na PM só fiz um exame de sangue, na admissão. A polícia não acompanha a saúde dos seus homens”, afirma o soldado Rocha, símbolo de que se pode chamar de “medida certa” às avessas. Ele explica que, quando entrou na corporação, pesava 80 quilos. Agora, com 115 e 1,78m de altura, vê o que acontece com os colegas. “Com a exceção dos novatos, a tropa é quase toda acima do peso. Sem atividade física e alimentação ruim, não tem como ser diferente”.

Sem percentuais que apontem a quantidade de policiais acima do peso, a PM só conta mesmo com o IMC médio da tropa. Mas a maior prova de que esse número é grande está nas ruas, onde há PMs exibindo cinturas protuberantes e fardas apertadas.

O problema é que poucos, como Rocha, querem falar no assunto. Menos ainda aceitam ser fotografados, como ele fez. Os que aceitam reclamam da falta de tempo e estrutura para fazer atividades físicas, além da dificuldade financeira para investir em alimentação.

O soldado Freitas*, da 12ª CIPM (Rio Vermelho), chegou a pesar 145 quilos e teve de fazer cirurgia de redução de estômago. Perdeu 40 kg e ainda luta contra a balança.

Obeso
“Eu já tinha um sobrepeso, mas na PM fiquei obeso. Você só faz tirar serviço e quando vê não suporta nem o próprio peso. O negócio deles é botar o policial na rua, não importa em que condição”, critica Freitas.

Já Oliveira*, que diante do seu excesso de massa imprime esforço maior que o normal para fazer rondas a pé pelo Centro, tem vergonha de revelar em que companhia é lotado. O segundo emprego o impede de malhar. “Temos que completar o orçamento fazendo um bico. Fica difícil fazer uma academia”.
       
Entre os oficiais, a realidade não é muito diferente. Um deles culpa o excesso de trabalho. “Pergunte à tropa se ela prefere fazer uma atividade física após o serviço ou ir descansar em casa”, observou capitão Matos*, do 18º Batalhão (Centro Histórico).  

Os PMs acima do peso relatam dificuldade não só para correr atrás de bandido, mas também para entrar e sair das viaturas, carregar armamento pesado e atirar com precisão.

Até as mulheres dizem que não têm como se cuidar. “As companhias deveriam ter aparelhos de musculação com acompanhamento de preparador físico”, disse a soldado Rita*, sem conseguir esconder os pneus debaixo da farda.

O sobrepeso, como se sabe, impacta na saúde. Hipertensão, diabetes, colesterol alto e doenças do coração são comuns na PM. Rocha acumula todos. Há dois anos, sofreu um Acidente Vascular Cerebral (AVC). “Estou com 115 quilos, mas já cheguei a 125”.

Prevenção
O coordenador da Associação dos Policiais e Bombeiros da Bahia (Aspra), Marco Prisco, diz que um dos pedidos da entidade é a realização de exames periódicos.

“Pelo menos duas ou três vezes por ano. Eles não têm o levantamento de AVCs e infartos, mas o índice é altíssimo”, diz Prisco, que aponta também problemas ortopédicos. “A tropa está doente. Só este ano soubemos de seis policiais que morreram de câncer”.

Outra prova de que a tropa está engordando está nas lojas que vendem uniformes da polícia. A Estrela Uniformes, na Ladeira da Praça, tem tido dificuldade no estoque porque trabalha apenas com a numeração das fardas entre 42 e 48.

“Mas, de uns tempos para cá, muitas têm que ser feitas por encomenda. Normalmente são para veteranos. Eles se cuidam menos”, decreta a dona do estabelecimento, Eliana Santana.

*nomes fictícios
Saúde da polícia foi deixada de lado, afirma oficial reformado
Para o major reformado e professor do mestrado de Segurança Pública da Universidade Federal da Bahia (Ufba), João Apolinário da Silva, o desleixo com o preparo físico e com a saúde dos policiais na Bahia começa a ser notado a partir do início da década de 1990, quando houve uma mudança estrutural na PM. Ele acredita que a criação das chamadas Companhias Independentes de Polícia Militar (CIPMs) afastou o policial de diversas atividades que lhe proporcionavam mais qualidade de vida.

Os antigos batalhões eram mais centralizados, diz o especialista, com academias e quadras poliesportivas. “Havia torneios de futebol e olimpíadas esportivas. Todos os batalhões tinham academias. Hoje o policial chega na companhia e vai direto para a rua. Antes eles tomavam café e almoçavam juntos. Era como uma família”.

O próprio Hospital da Polícia Militar, que funcionou muito tempo nos Dendezeiros, está fechado há dois anos. As mudanças ocorreram, explica o oficial reformado, de cima para baixo. Segundo o professor, com o passar dos anos, a saúde foi esquecida pelo Comando. “Antes, a polícia tinha três quadros: o operacional, o administrativo e o médico. Só para se ter uma ideia, cada batalhão tinha a sua ambulância. Depois, o operacional teve uma supremacia sobre os outros dois. A questão médica foi completamente colocada de lado”.

O professor observa que, na Bahia, praticamente não há estudos científicos sobre a saúde dos policiais. Ele defende que seja criado um planejamento estratégico para saber qual é o tamanho desse problema. “É preciso que se faça um diagnóstico da vida dos policiais para a elaboração de um programa de condicionamento físico”. A própria geografia da cidade, diz ele, pede isso. “Imagine uma pessoa obesa, com armamento sensível, subindo o Alto das Pombas. É por isso que as tragédias ocorrem”, acredita.

Rango de graça em restaurantes favorece pecado da gula
Há algumas explicações para que o Índice de Massa Corporal (IMC) da PM esteja bem distante do atingido pelo atlético lutador Anderson Silva e bem perto do alcançado pelo pesado atacante Walter, do Goiás. Uma dessas explicações está nos próprios policiais. Não foram poucos os que, sem se identificar, apontaram o pecado da gula como uma das causas do problema. Ou seja, a culpa da silhueta avantajada não é só de quem comanda a tropa.

Até porque, como é comum nas ruas de Salvador, PMs têm acesso livre em restaurantes e lanchonetes. E sem pagar nada. “Tem isso também. Muitos de nós têm o privilégio de se alimentar de graça. Uns acabam comendo demais. E várias vezes por dia”, reconheceu um sargento da 12ª CIPM (Rio Vermelho).

O CORREIO chegou a interpelar um PM que, após sair de uma lanchonete na Praça da Sé, no Centro Histórico, se recusou a falar de suas operações gastronômicas. “Não tenho como conversar com você em serviço”, esquivou-se. Conversar não pode, mas, pelo visto, comer é de lei. O dono da lanchonete disse que tudo não passa de um agrado. “Estou aqui há muito tempo e sempre foi assim”, disse.

Mas, segundo contam donos de estabelecimentos e os próprios policiais, a prática é quase uma moeda de troca não declarada. “É aquela coisa. Ele faz a segurança da área e eu ajudo na alimentação”, disse o dono de um bar, na Barra.

Ali, todos os dias, sempre às 20h, uma viatura passa pela porta do estabelecimento. Um policial desce e pega a encomenda com petiscos diversos e refrigerantes. Para a maioria dos PMs e dos donos de restaurante, tudo é muito natural. Mas a dona de um restaurante no Rio Vermelho argumenta que a relação é, por vezes, tensa.

“Tem policial que fica viciado, sabe? A partir do momento que ele vê aquilo como uma moeda de troca fica complicado. Tem gente que dá por medo de ser assaltado”, destacou. Procurada pelo CORREIO, a assessoria de comunicação da Polícia Militar não respondeu, até o fechamento desta edição, sobre a prática relatada por donos de restaurantes.

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