segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Médicas são punidas por realizar abortar crandestinos

Punidas por abortar

CLARA (nome trocado),CLARA (nome trocado),
que cumpre pena em Campo Grandeque cumpre pena em Campo Grande

“Fale baixo, ninguém sabe dessa história”, diz Clara, de 31 anos. Suas mãos tremem enquanto ela manda os dois filhos para o quarto. A casa simples tem apenas três cômodos e fica em Campo Grande, em Mato Grosso do Sul. Do outro lado da cidade, em uma residência grande e confortável, Cláudia, de 18 anos, e sua mãe, Giovana, também pedem discrição. “Vamos conversar aqui na sala, o restante da família não sabe o que aconteceu”, diz a mãe da menina. Medo, angústia e vergonha são sentimentos em comum relatados também por Laura, de 17, Ana, de 38, e Luíza, de 24. Essas cinco mulheres (todas com o nome trocado, para proteger sua privacidade) foram acusadas pela Justiça de cometer aborto. Pela lei brasileira, a mulher que aborta está sujeita a pena de um a três anos de detenção.

O médico ou outro responsável pelo procedimento pode pegar de um a quatro anos de reclusão. As exceções são para casos de estupro e quando a gestação oferece risco de morte à mãe – nesses casos, a lei permite encerrar a gravidez. Para escapar da exposição de um júri popular, essas cinco mulheres aceitaram um acordo processual. Submeteram-se à pena alternativa de prestação de serviços à comunidade. Elas fazem parte do maior processo conjunto que o país já teve contra mulheres que abortaram. Ao todo, são 2.800 fichas médicas nas mãos do juiz da 2a Vara do Tribunal do Júri de Mato Grosso do Sul, Aloísio Pereira dos Santos. Também é a primeira vez que mulheres são acusadas por aborto sem um flagrante policial. A apreensão das fichas aconteceu em 13 de abril de 2007, ao ser desmantelada uma clínica de planejamento familiar, no centro de Campo Grande, onde aconteceriam abortos clandestinos. Nenhuma paciente foi encontrada no local, mas os exames positivos de gravidez e as fichas apreendidas tornaram-se a prova do crime. O inquérito foi instalado. De lá para cá, 25 mulheres foram formalmente acusadas.
"Fui até a clínica em busca de orientação. Mas quando a médica soube que eu era faxineira, me deu as costas e mandou as funcionárias resolver meu problema. Nunca vou esquecer a humilhação"

A proibição do aborto é uma das maiores polêmicas da sociedade brasileira. O Brasil tem mais de 1 milhão de abortos clandestinos por ano, segundo estimativa da ONG Ipas Brasil, ligada à saúde reprodutiva. Essa seria a terceira causa de morte materna no país. Segundo dados do Ministério da Saúde, em 2006, cerca de 230 mil mulheres sofreram complicações durante o procedimento. De um lado, associações feministas e vários advogados e médicos acreditam que o aborto é uma opção pessoal e deveria ser legalizado. De outro, religiosos e entidades de proteção à família consideram os fetos em desenvolvimento indivíduos com direitos próprios, sendo o principal deles o direito à vida. O debate está em pauta. Na semana passada, a Câmara dos Deputados votou um dos 17 projetos de lei sobre o tema. O projeto, de 1991, propunha a revogação do artigo que penaliza as mulheres, mas o relator, o deputado Jorge Tadeu Mudalen (DEM/SP), mudou o texto para manter a lei como está. Assim, as penas das cinco mulheres entrevistadas por ÉPOCA serão mantidas: 52 dias de dedicação a trabalhos gratuitos à comunidade.

A rotina das mulheres condenadas por aborto é sigilosa e, muitas vezes, constrangedora. Ana sai de casa todos os dias às 5 horas. Antes de entrar no trabalho, ela é obrigada a fazer faxina em uma creche. O chefe não sabe as razões de seus atrasos. “Quem vai querer uma funcionária que faz serviço comunitário porque fez um aborto?”, diz. Ana nega que tenha se submetido ao procedimento intencionalmente. “Perdi o filho por excesso de esforço físico.” Laura e Luíza também não assumem a prática. Elas relatam histórias diferentes para explicar a perda do bebê, como andar muito de bicicleta e subir escadas. Apenas Cláudia admite que fez um aborto por causa de uma gestação indesejada. Os relatos dessas mulheres fichadas na clínica de planejamento familiar possuem apenas um ponto em comum. Todas afirmam ter passado pelas mãos da médica anestesista mineira Neide Mota Machado, de 54 anos. Ela era a dona da clínica e a única médica a atuar no local.

Neide se diz “defensora dos direitos reprodutivos da mulher” e nega ter feito abortos clandestinos. “Só fiz procedimentos legais, como aborto em vítimas de estupro”. Formada em Medicina pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro, em Uberaba, a médica possui uma trajetória curiosa. Para conseguir sair de casa, casou-se com o coveiro da cidade. “Meu pai era muito relapso com a família. Ele nos deixou passar fome”. Depois de se formar e largar o marido, ela conta que foi morar no Rio de Janeiro para fazer residência em anestesiologia. Hoje viúva, a médica expõe suas razões para não ter tido filhos. “O que temos para oferecer a uma criança neste mundo em que há competição, violência e corrupção? As pessoas são como os macacos. Colocam crianças no mundo só porque todos têm”. Para ela, isso explica casos como o de Isabella Nardoni, a menina de 5 anos assassinada em março, em São Paulo. “Isabella não veio de uma gravidez desejada. O que fizeram com ela? Jogaram-na pela janela.” Neide afirma ter-se decepcionado com a profissão de anestesista e decidido fazer um curso de Planejamento Familiar, na Universidade de Campinas (Unicamp), em São Paulo. A Unicamp não tem registro de Neide como aluna. Diz que o curso a que ela se refere era apenas um treinamento de um mês. De Campinas, ela teria seguido para Campo Grande, onde a mãe morava. Lá, abriu a clínica em uma das principais ruas da cidade. Em duas décadas, Neide atendeu 9.886 pacientes. Entre elas estão as 2.800 mulheres que também podem ser processadas.
As mais pobres recebiam abortivos e eram orientadas a procurar o hospital em caso de hemorragia
O Ministério Público acusa a médica de ter lucrado quase R$ 8 milhões com a prática de abortos ilegais. “Cerca de 70% das mulheres iam à clínica para se informar sobre aborto. As investigações mostram que ao menos metade delas interrompeu a gravidez”, diz o promotor do caso, Paulo Cezar dos Passos. A primeira investigação sobre a clínica, baseada em denúncias anônimas, aconteceu há três anos. A polícia só conseguiu permissão judicial para fechar o local depois de uma reportagem de televisão, no ano passado. Dois produtores da TV Morena, filiada da Rede Globo, foram com câmeras escondidas e conseguiram gravar uma funcionária cobrando R$ 5 mil por um aborto que seria praticado por Neide. “Encontramos medicamentos abortivos (alguns para induzir o aborto em porcos e cavalos), equipamentos clínicos para curetagem, três instrumentos de sucção e até um triturador de fetos”, diz a delegada Regina Márcia Rodrigues de Brito, responsável pelo caso. Entre os remédios apreendidos estavam 27 caixas de Cytotec – o misoprostol, uma substância considerada abortiva, cuja venda é proibida no país. Neide se defende das acusações. “A polícia fez a busca e apreensão sem minha presença. Agora, eles podem afirmar qualquer coisa.” Ultra-sonografias que comprovam as gravidezes e termos de declaração em que mulheres concordaram em fazer uma curetagem também foram apreendidos. “Se elas estavam grávidas, foram consultadas na clínica e não tiveram os filhos, onde estão as crianças? Onde estão as provas de que elas sofreram abortos espontâneos e fizeram a curetagem em outros hospitais?”, diz o promotor.

As 25 mulheres punidas acusam Neide de ter praticado aborto nelas ou ter tentado induzi-las ao ato. “A médica riu de minha cara quando perguntei o que ela indicava para meu caso. Ela me disse que lá era um lugar apenas para fazer aborto”, afirma Clara. Ela diz que o valor inicial cobrado pela médica era de R$ 8 mil. Como não tinha condições de pagar, o preço baixou para R$ 1.000. Na ficha da moça, está escrito “banguela”. Ela tem os dentes perfeitos – o termo seria usado na clínica para se referir às mulheres de baixa renda. “As mais pobres tomavam apenas remédios abortivos, como o Cytotec, e eram orientadas a procurar hospitais públicos quando começassem a ter hemorragia”, diz a delegada. Clara também afirma que foi vítima de preconceito. Havia uma espécie de questionário anexado à ficha das pacientes. Nele, eram registradas informações sobre a aparência, o meio de locomoção, visão moral e religiosa e até observações estapafúrdias, como o “grau de arrogância” da paciente. “Na clínica, tinha uma placa que dizia: planejamento familiar. Fui até lá em busca de orientação. Mas, quando a médica soube que eu era faxineira, me deu as costas e mandou as funcionárias resolver meu pepino. Nunca vou esquecer a humilhação”, diz Clara.

Duas entrevistadas acusam a médica de mentir sofre o feto. Laura diz que estava feliz com a gravidez, mas o namorado não. Ela afirma que tomou Cytotec comprado pelo namorado, mas o remédio não funcionou. “Eu me arrependi e quis buscar ajuda. Fui ao local para fazer uma ultra-sonografia e ver como a criança estava”. A médica teria dito à moça que o feto estava deformado e poderia matá-la. Teria dito ainda que o bebê acabaria morrendo. O namorado de Laura teria pago R$ 3.500 pelo aborto. Outra acusação vem de Luíza. “Eu e meu namorado estávamos felizes com a gravidez. Mas tive uma hemorragia e busquei essa clínica, que era perto de minha casa.” Novamente Neide teria aconselhado a curetagem para retirar os restos do feto. “Ela disse que eu poderia morrer de infecção.”

Ao ser convocada para depor na delegacia, Luíza soube por meio da ultra-sonografia apreendida que seu bebê estava vivo antes da curetagem. “Não consigo parar de pensar nessa história. Parei de trabalhar e sofro de depressão. Nem saio de casa. Tenho muito medo de o oficial de justiça me procurar e revelar tudo para minha família.” A médica negou o procedimento mais uma vez. “Essas meninas sofreram aborto espontâneo. Fiz uma curetagem para retirar restos do feto. Se não fizesse isso, elas perderiam o útero.” Neide atribui o fechamento de sua clínica a uma perseguição política. Ela diz que foi punida por ter denunciado a ex-funcionária Zenaide Correa, sua ex-secretária. Desde 2004, um inquérito policial investiga a fraude de cheques e desvios de dinheiro da conta bancária da médica em favor de Zenaide. ÉPOCA teve acesso ao inquérito contra Zenaide, no qual constam cheques falsificados pela ex-secretária. Apesar de ter sido braço direito de Neide, Zenaide não foi denunciada por crimes de aborto. Hoje, ela trabalha no gabinete do governador do Estado, André Puccinelli (PMDB-MS). Ao ser indagado sobre o motivo de ela não constar das investigações, o promotor afirmou que as mulheres atendidas na clínica antes de 2007 serão investigadas e que “Zenaide Correa também será denunciada”. ÉPOCA procurou Zenaide em sua casa e no trabalho, sem encontrá-la. Ela não respondeu a nenhum dos recados e telefonemas da reportagem. O procurador-geral de Mato Grosso do Sul, Rafael Goldibelli, disse que a “denúncia é mera especulação”, mas, se a funcionária estiver envolvida em abortos ilegais, poderá ser afastada.
PROVAS DO CRIME
Quase 10 mil mulheres passaram pela clínica de Neide Mota em duas décadas. Além das fichas, foram apreendidos pela polícia medicamentos abortivos, ultra-sonografias de gravidez e até um triturador de fetos

O processo contra Neide poderá levar anos para ser julgado. Um habeas corpus concedido em agosto de 2007 garante que ela aguarde o julgamento em liberdade. Por enquanto, só ex-pacientes da clínica foram punidas. Isso é comum: a balança de processos por aborto pende mais para o lado das mulheres que para os médicos. “Elas são mais expostas porque, depois que começam o aborto em casa ou em uma clínica, procuram a ajuda de terceiros ou correm para o hospital. E aí são denunciadas”, diz a advogada Ana Paula Sciammarella, da ONG Advocacia Cidadã pelos Direitos Humanos (Advocaci). Uma pesquisa que ela ajudou a realizar, no Rio de Janeiro, mostra que, em 147 inquéritos contra mulheres que fizeram aborto, entre 1990 e 2004, apenas 93 médicos foram investigados. Desses 147 inquéritos, 11 resultaram em ações judiciais. Três mulheres foram presas ao procurar auxílio médico. Uma delas passou dois meses detida. Para Laura, condenada no processo de Campo Grande, há uma sensação de injustiça que a impede de superar o trauma do aborto. “Eu e minha mãe fomos penalizadas. Como sou menor de idade, é ela quem faz as faxinas em uma escola. Duvido que algo aconteça com os outros envolvidos”.

A pena à qual foram sujeitas também é questionada. O juiz Aluízio Pereira dos Santos afirma que a decisão foi proposital, para fazê-las refletir sobre a maternidade. “Se elas forem trabalhar em creches e escolas, vão ver que muitas mulheres podem criar um filho com um pouco de esforço”, diz. “Mandar mulheres que abortaram recentemente trabalhar com crianças é uma tortura moral e afetiva”, diz a antropóloga Debora Diniz, diretora do Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, em Brasília, defensora da descriminalização do aborto.




Uma comissão de quatro entidades de defesa da mulher e do aborto está organizando mobilizações pelo não-indiciamento das outras 2.800 mulheres. A socióloga Natália Mori, diretora do Centro Feminista de Estudos e Assessoria, diz que, desde a ação em Campo Grande, houve uma onda de batidas policiais em clínicas de aborto no país. Por enquanto, nenhuma delas investigou as fichas médicas. Mas o temor das entidades é que o episódio de Mato Grosso do Sul abra precedentes para que outras acusações sem flagrantes se espalhem pelo país. Se isso acontecer, todas as brasileiras fichadas em clínicas de aborto ilegal correrão o risco de também serem criminalizadas.
Quem é punido por aborto?
No Brasil, não há dados sobre o número total de penas contra mulheres que abortaram. Uma pesquisa no Rio de Janeiro confirma a avaliação de especialistas: as mulheres são mais denunciadas que os médicos


 
Reprotagem da revista Época!!
http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI4447-15228-2,00-PUNIDAS+POR+ABORTAR.html

Nenhum comentário:

Postar um comentário